'Até quando?' RJ teve quase 9 feminicídios e 32 tentativas por mês em 2024; 'Muitos medos', diz mulher que levou 2 tiros do ex
11/03/2025
(Foto: Reprodução) Justiça concedeu 43 mil medidas protetivas, e 5 mil foram presos por violência contra mulheres. Série do g1 traz dados de crimes, relatos de vítimas e especialistas, que apontam que o aumento dos índices tem por trás também o crescimento do número de denúncias. 'Até quando?' Os números da violência contra mulher que insistem em subir
Um levantamento do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostra que os principais indicadores de violência contra mulheres aumentaram durante o ano de 2024 em todo o estado do Rio de Janeiro.
Segundo o ISP, o número de feminicídios chegou a 107 em 2024. Um aumento de 8% em relação a 2023, quando 99 mulheres foram mortas.
As estatísticas refletem vidas interrompidas, rotinas alteradas e sonhos impedidos por criminosos, que acreditaram que podiam atentar contra a vida de mulheres.
➡️Esse é um dos assuntos abordados na série especial do g1 "Até quando?". As reportagens contam histórias de vítimas, o luto de suas famílias e os desdobramentos que as suas mortes ocasionam, como os órfãos do feminicídio.
Saiba identificar os tipos de violência doméstica, o que prevê a lei e como buscar ajuda
As estatísticas
As tentativas de feminicídio, também no ano passado, chegaram a 382 casos registrados – e sabe-se que não são todas as vítimas que registram os casos na polícia. No ano anterior, foram 308 vítimas, o que aponta um aumento de 24%.
Enquanto isso, mais de 5 mil agressores foram presos por violência contra mulheres, em diferentes crimes, conforme apontam dados do Tribunal de Justiça do Rio, e 43 mil medidas protetivas também foram expedidas de janeiro a dezembro de 2024.
Mapas feminicídios
Leia também:
21,4 milhões de brasileiras sofreram algum tipo de violência nos últimos 12 meses, diz pesquisa
92% das agressões contra mulheres ocorreram diante de testemunhas, diz pesquisa
Quase 17% das brasileiras sofreram uma batida, tapa, empurrão ou chute nos últimos 12 meses, o maior percentual da série histórica de pesquisa
As mortes de mulheres por feminicídio se concentram mais na capital fluminense, onde foi registrada quase metade dos casos:
Rio de Janeiro - 51
Belford Roxo - 7
Duque de Caxias - 6
Campos dos Goytacazes - 5
Maricá - 4
As tentativas de feminicídio também foram mais comuns na cidade do Rio:
Rio de Janeiro - 117
Duque de Caxias - 23
Campos dos Goytacazes 22
Nova Iguaçu - 16
Belford Roxo - 14
O crime de assédio sexual teve um aumento de 44,7% na cidade do Rio, onde foram registrados 178 casos em 2024.
As invasões de domicílio também assustam:
Rio de Janeiro - 984
Nova Iguaçu - 201
Campos dos Goytacazes - 166
São Gonçalo - 124
Magé - 119
De acordo com o Dossiê Mulher, os agressores costumam ser companheiros ou ex parceiros das vítimas, e a motivação em mais de 80% dos casos é relacionada a problemas no relacionamento – como tentativas de separação.
A queda na banalização da violência
Se por um lado aumentam os índices de violência, vê-se também a alta no número de denúncias – de vítimas que têm vencido o medo de não mais se calar.
“Não é o crescimento da violência, mas o aumento na busca ativa das mulheres nas formas de saída e, claro, aos direitos no âmbito jurídico. Eu gosto de trazer essa reflexão porque acho muito cruel invisibilizar as violências do passado que não eram registradas porque eram normalizadas e banalizadas. O sucesso nem sempre é só a queda dos números, porque a busca e a denúncia também são conquistas pra gente”, explica a secretária da Mulher do Rio, Joyce Trindade.
Estatísticas oficiais mostram que o Ligue 180, serviço do governo federal para captar denúncias de violência contra a mulher, tem registrado aumento de ocorrências ano após ano.
Em 2021, foram 82.872 denúncias.
Em 2022, foram 87.794 denúncias.
Em 2023, foram 114.848 denúncias.
Em 2024, foram 132.084 denúncias.
A advogada Letícia Peres também atribui alguns aumentos ao fato das leis terem sido atualizadas, proporcionando uma clareza maior de quais crimes estão sendo cometidos de forma mais recorrente.
"Sem dúvidas há uma procura maior da população feminina às autoridades, porém o fato de termos leis especializadas e frentes de trabalho destacadas com profissionais que trabalham no enfrentamento à violência contra as mulheres, assim como campanhas de conscientização sobre os direitos da vítima e sanções ao agressor, e de incentivo às denúncias têm permitido a atuação mais eficiente dos órgãos responsáveis", destaca a advogada.
Para ela, crimes de atentados contra mulheres mostram um comportamento "de uma cultura patriarcal que favorece os homens, dando-lhes espaço de poder, que as trata como objetos que podem ser usados por eles".
Já o especialista em segurança pública Patrick Berriel afirma que o aumento nos índices de violência contra mulher mostra "uma diminuição da subnotificação" - os crimes eram cometidos, mas agora são denunciados. O rastreio dos delitos ainda não é suficiente para freá-los.
"Conforme estudos criminológicos indicam, esses crimes muitas vezes não são premeditados, mas sim impulsivos, movidos por um ódio e possessividade extremos. Por isso, o endurecimento das penas por si só pode não ser suficiente para inibir esses atos, já que o agressor, em muitos casos, não reflete sobre as consequências legais no momento do crime", afirma o advogado.
"As mulheres estão entendendo que não é para acontecer com elas, com a sua irmã, com a sua colega de trabalho. Estão se unindo e denunciando. Então, os números aumentaram porque eu acredito que aumentou a consciência sobre isso", conta a assistente social Patrícia Leal, que integra a coordenadoria estadual de Atendimento à Mulher Vítima de Violência.
A população negra é uma grande afetada, de acordo com a assistente social Erika Carvalho.
"Os casos de feminicídios e tentativas são, em sua maioria, contra mulheres negras. A gente precisa chamar atenção para isso, não envolve só uma questão de gênero, mas racial também. Por que o corpo negro é visto como matável? Precisa pensar as duas questões", destaca a coordenadora do Centro de Referência de Mulheres da Maré, da UFRJ.
Os dados do ISP apontam que cerca de 70% das vítimas de feminicídio em 2024 eram pardas ou negras.
As vidas atrás dos números
A jovem Agatha Marques foi baleada com dois tiros na cabeça
Redes sociais
Um dos rostos por trás desses números é o de Agatha Marques, que em 7 de abril de 2024 foi atacada pelo ex com dois tiros na cabeça. Mãe de duas crianças, vive desde então “o maior desafio da vida”, como ela mesma define.
“Diante de uma expectativa dos médicos de até três meses em coma, surpreendi e voltei em duas semanas. A partir dali, não parei de me superar. Sei que ainda tenho um grande caminho pela frente, mas sempre fui forte, e não vai ser essa fatalidade que irá me parar”, diz.
Os tiros deixaram graves sequelas na locomoção da vítima, que ainda sofre com convulsões por conta das lesões no cérebro. Hoje, Agatha depende dos cuidados dos pais para conseguir criar os filhos e cumprir a rotina médica de recuperação, e vive de pequenas conquistas: no fim do ano, conseguiu voltar a andar.
“Sempre fui uma mulher muito independente e sem medo de nada, tinha uma rotina agitada de cuidar de casa e filhos, uma mulher cheia de vontade de viver. Hoje, estou no processo de recuperação, infelizmente essa independência de antes não tenho mais."
“Tenho muitos medos. Medo também de não ter mais a oportunidade de cuidar dos meus filhos como antes e, ao mesmo tempo, agradecendo que, apesar de todas as dificuldades, tenho o privilégio de estar perto deles diariamente”, acrescenta.
Agatha Marques
Redes sociais
Agatha tem fé e se dedica à sua completa recuperação para retomar a autonomia.
“No final, será eu vindo aqui mais uma vez dizer a todos que eu venci, eu consegui e vou escrever uma nova história da minha vida. Uma história bonita, de recuperação, de milagres e de muito amor e superação."
A visão 'machista' dos agressores
Para a juíza Tula Mello, titular do 3º Tribunal do Júri, do Tribunal de Justiça do RJ, os relatos dos homens acusados de feminicídio são feitos "numa visão machista sobrecarregada de estereótipos de gênero":
"Eles muitas vezes começam numa narrativa tentando desqualificar a vítima, afirmando que ela não exerceu da forma adequada o papel dela, o papel atribuído às mulheres. Geralmente, eles falam que deu um branco e aí explodiram. Perderam o controle. Não sabem dizer", explica a juíza.
O poder paralelo como inimigo das denúncias
A secretária da Mulher destaca ainda que a violência armada no Rio, os constantes confrontos de criminosos rivais e a rotina das comunidades dominadas pelos bandidos dificultam o pedido de socorro das vítimas ao Estado.
Trindade aponta que as mulheres se sentem intimidadas e receosas de acionar a polícia e gerar represálias dentro das favelas onde vivem e, por isso, se calam.
“Um dos pontos de análise que eu trago é a falta de confiabilidade no Estado. Essas regiões mais afastadas, periféricas, têm o acesso às políticas públicas recentes. Assim como a gente vê a busca pela Maria da Penha ser recente também. Na Zona Oeste, os números estão começando a crescer agora”, explica.
Indicadores de violência contra mulheres no RJ
“Os poderes paralelos dessas regiões têm uma força de muita intimidação. As mulheres não conseguem dar crédito ao poder do registro. A gente também vê esse índice na Zona Norte pela grande crise de violência na região. A gente presencia na televisão, e a violência na sociedade impacta na violência de gente, porque os ambientes violentos também provocam um aumento da violência no âmbito familiar”, afirma Joyce.
Com o objetivo de reduzir esses índices, a Prefeitura do Rio criou a Casa da Mulher Carioca e os Centros de Atendimento à Mulher, que oferecem treinamentos, cursos, qualificações e apoio jurídico, além de suporte para denúncias e acolhimento de mulheres em situação de vulnerabilidade e violência.
“Eu sempre digo que a pobreza ainda tem cara de mulher, tragicamente, no Brasil. E a cara de uma mulher em sua maioria negra e em sua maioria mãe de filhos pequenos. A gente precisa combater isso de forma emergencial”, afirma a secretária.
“Nesse caminho nós oferecemos essas qualificações profissionais, que é justamente a porta de entrada. Essa mulher vê: ‘Caramba, tô com necessidade financeira, tô com aperto, tô com fome, preciso trazer para minha família dignidade’. Geralmente é pensando na família. Nós atraímos essa mulher a partir dessa qualificação profissional e ali a gente coloca como forma pedagógica, em todos os programas da gente, aulas sobre os direitos da mulher”, conclui Trindade.
Onde pedir ajuda?
190 - para acionar a Polícia Militar em casos de emergência
180 - para acionar a Rede de Atendimento à Mulher em situação de violência
100 - para denúncias de violação de Direitos Humanos
Delegacias de Atendimento à Mulher (Deam): para registrar boletins de ocorrência, solicitar medidas protetivas e pedir exames de corpo delito
WhatsApp do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos: (61) 99656- 5008
Unidades do Ministério Público para se informar e pedir ajuda na solicitação de medidas protetivas